Os dados que tiveram a divulgação proibida no período eleitoral, levando o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a uma crise interna, finalmente vieram à tona. Disponibilizados no banco de informações públicas do órgão, os números mostram que, pela primeira vez em 10 anos, a miséria no Brasil aumentou — os extremamente pobres subiram de 10,08 milhões para 10,45, de 2012 a 2013. A notícia do acréscimo de 3,7% de indigentes foi barrada pelo governo, desde setembro, sob a justificativa de que feriria a lei eleitoral. Interpretada como censura dentro do instituto, a decisão levou dois pesquisadores de carreira a pedirem exoneração dos cargos de chefia. E, agora, os dados engrossam o coro da oposição sobre o “aparelhamento da máquina pública” e o “baixo nível” da campanha presidencial.
O acréscimo de 371 mil brasileiros no grupo de extremamente pobres levou em conta a renda mínima necessária para o consumo de 2 mil calorias por dia, conforme recomendação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e pela Organização Mundial da Saúde. Para isso, seriam necessários cerca de R$ 100 por mês. Por esse critério, só o Nordeste apresentou uma leve queda no número de miseráveis de 2012 (5,95 mihões) para 2013 (5,86 milhões). As outras regiões tiveram um ligeiro aumento. Já o número de pobres caiu 5,4%. A renda deles equivale ao dobro da linha da miséria, mas inclui também os extremamente pobre.
Pelo critério usado pelo governo federal no programa Brasil sem Miséria, a linha de extrema pobreza é de uma renda de aproximadamente R$ 79 por mês. Mesmo por esse recorte, houve um aumento proporcional no número de indigentes, passando de 3,6% da população brasileira em 2012 (7,23 milhões de pessoas) para 4% (8,1 milhões de pessoas) no ano passado. Em 2004, o número de miseráveis correspondia a 7,6% da população — ou 13,87 milhões de brasileiros. Um funcionário do Ipea contou que, levando em conta o critério estatal, apenas três unidades da Federação registraram queda na miséria: Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Norte.
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), Flávio Comin atrela a situação econômica do país ao crescimento da miséria. “A pobreza não independe dos dados macroeconômicos. Não adianta transferir renda se a inflação come esse dinheiro. O mercado de trabalho, que tem contribuído historicamente com pelo menos um terço da redução no país, enfrenta dificuldades porque vivemos numa recessão técnica”, explica. Ele observa ainda que o Bolsa Família, principal programa de transferência de renda, passou anos sem reajuste, até maio de 2014, quando o valor dos benefícios foi atualizado.
“Margem de erro”
O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) se manifestou, ontem, em nota, afirmando que não é correta a afirmação de que a extrema pobreza aumentou no país. “Qualquer análise que se faça sobre os microdados de 2013 (da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, Pnad, em que se baseia o dado do Ipea) levará flutuações estatísticas dentro da margem de erro. Os dados da Pnad precisam ser analisados na perspectiva das trajetórias das políticas públicas e seus impactos.”
Ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, à qual o Ipea está ligado, Marcelo Neri disse que o Ipea adiou a divulgação dos dados “no intuito de se proteger”, e que as informações do instituto não são oficiais, já que o órgão “não tem esse poder”. “Não houve nenhum estudo segurado. Existe uma decisão, a priori, feita de forma autônoma pelo Ipea para resguardar a instituição durante o período eleitoral porque existem restrições sobre a capacidade de divulgar dados”, disse.
Neri destacou que a decisão do instituto não sofreu interferência do governo federal. “Foi uma decisão da diretoria do Ipea de não divulgar dados bons ou ruins em qualquer circunstância.” Ele acrescentou ainda que houve estabilidade em alguns indicadores sociais, e o crescimento de renda foi de 5,5% ao ano no último biênio.
Colaborou Daniela Garcia
“A pobreza não independe dos dados macroeconômicos. Não adianta transferir renda se a inflação come esse dinheiro”
Flávio Comin, professor da UFRS
"Manobra antidemocrática"
Os dados revelados tardiamente pelo Ipea ecoaram entre a oposição. Líder do PSDB na Câmara, o deputado Antônio Imbassay (BA) chamou de “manobra antidemocrática e até criminosa” a atitude do governo de “esconder” as informações da população. “E tudo para quê? Para tentar vencer as eleições a qualquer custo, uma técnica de vencer as eleições baseada em uma campanha de baixo nível, com muitas mentiras e omissão de dados.” Segundo ele, a população, ao se sentir enganada, cobrará com muito mais vigor os resultados prometidos pela presidente Dilma Rousseff.
A senadora Ana Amélia (RS), vice-líder do PP, aponta manipulação dos dados. “Não importa se era época ou não de eleição. Isso demonstra o uso da máquina pública num processo eleitoral. Por isso, sou totalmente contrária à reeleição”, afirma a parlamentar. Ana Amélia apontou os prejuízos da “aguda” utilização da máquina pública em órgãos técnicos. “Dois técnicos saíram do Ipea por causa disso. Isso é uma vergonha nacional: manipular vergonhosamente dados que a sociedade teria direito de saber.”
Para o deputado federal Marco Maia (PT-RS), a oposição peca ao fazer análise isolada de um dado para avaliar “todo um governo ou todo um projeto”. “Não existe nenhum indicador neste país, seja ele social, econômico ou político, que, comparado com o governo Fernando Henrique Cardoso apresente desvantagem em relação aos governos Lula e Dilma”, rebateu. O petista considerou “natural” que o Ipea “cheque” e “recheque” informações tão técnicas.
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